RESENHA

HISTORY OF LINGUISTICS 2002.
Selected papers from the ninth International Conference in the History of Language Sciences, 27-30 August 2002, São Paulo, Campinas.
GUIMARÃES, Eduardo e BARROS, Diana Luz Pessoa de (eds.) Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 2007.

 

Esta edição de History of Linguistics traz uma seleção de textos apresentados na IX Conferência Internacional de História das Ciências da Linguagem – ICHoLS, realizada na Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e na Universidade de São Paulo – USP de 27 a 30 de agosto de 2002.
O prefácio dos editores Eduardo Guimarães e Diana L. Pessoa de Barros apresenta informações sobre a organização dos textos, tendo em conta a variedade de temas tratados no evento e o grande interesse na história da lingüística no Brasil. A obra se divide em três partes: Parte I. Dos gramáticos latinos aos ideólogos; Parte II. Lingüística nos séculos XIX e XX; e Parte III. Apresentações Plenárias.
A primeira parte inicia com um texto de Bernard Colombat, que estuda alguns problemas na transferência do modelo latino para as primeiras gramáticas francesas do século XVI, relativamente às categorias verbais de voz e modo ligadas aos verbos impessoais e às formas condicionais em –rais.
Um problema observado pelo autor foi a dificuldade de renunciar ao gênero verbal latino, que levou muitos gramáticos a considerar apenas os gêneros ativo e neutro no francês, impedindo uma análise da frase perifrástica être + particípio passado. Ao lado disso, a consideração de que haveria ‘voz verbal’ em francês se deve, segundo Colombat, a um mal-entendido. A partir desse mal-entendido, pode-se compreender como foi possível analisar on aime como passiva pela correspondência com o amatur do latim. Outro problema é que a análise da forma condicional –rais não abrangia as inúmeras possibilidades de uso no francês, se restringido a muito poucas observações.
As reflexões sobre esses problemas mostram como aquilo que seria próprio do francês ou é moldado segundo o modelo latino ou não é devidamente observado. Segundo o autor, no século XVI ainda havia muito a fazer para fornecer uma boa descrição da língua francesa.
A transferência do modelo latino (de Prisciano) nas primeiras gramáticas do francês (dos séculos XVI e XVII) também é o tema do texto de Jean-Marie Fournier, que focaliza a questão da identificação das categorias verbais e a emergência do problema dos valores do passado simples e do passado composto.
O autor começa suas análises pela gramática de Pillot (1550), para a qual a língua francesa contaria com dois pretéritos perfeitos, diferentemente do latim. Essa gramática traz a primeira menção de fatos relativos ao que se chamará de regra das 24 horas, a partir da qual se pode dizer j’ai lu aujourd’hui l’Evangile, je lus hier l’Evangile, mas não se pode dizer j’ai lu hier l’Evangile, je lus aujourd’hui l’Evangile. Já Meigret (1550) observa que o sistema de tempos do francês comporta uma forma de criação francesa, o passado composto. E, em Maupas (1607), há uma reintepretação do critério referencial que distingue as categorias do passado formulado pela regra das 24 horas. O critério de referência não é tomado como um ponto relativo à recuperação das 24 horas, mas sim como um intervalo de referência, e as duas categorias do pretérito se distinguem pela posição desse intervalo em relação ao instante da fala. Segundo Fournier, a gramática de Maupas trouxe o essencial das análises sobre o passado, que serão desenvolvidas e sistematizadas posteriormente pelos gramáticos gerais.
O texto que segue é o de Bethânia Mariani, que estuda o discurso sobre as línguas no início da história brasileira em crônicas escritas sobre o Brasil colônia, do século XVI ao XVIII.
De início, seu estudo mostra a produção de uma imagem de precariedade das línguas indígenas nesses textos, através, por exemplo, das recorrentes formulações sobre a falta de fé, lei e rei dos índios, deduzidas pela falta das letras F, L e R em sua língua. Ao mesmo tempo, quando se tratava de comparar a língua geral com as demais línguas indígenas, a língua geral era “fácil, elegante, suave e copiosa”, contrapondo-se às demais línguas das nações tapuias, de “fala rouca” e que “não se entende”, não sendo nem fáceis, nem elegantes, nem suaves.
Mariani vai mostrando, desse modo, como os índios, suas línguas, e as coisas do novo mundo vão sendo significados pelo europeu. Nesse contexto, o processo de designação pela incorporação de palavras indígenas na língua portuguesa produz uma tensão entre determinação e indeterminação em dois mecanismos discursivos alternantes: a explicitação dessa origem (na língua dos índios Pacôuas) e o uso de um nome sem nenhuma especificação (chamão lhes anânazes). Segundo a autora, essas alternâncias apontam para a complexa rede de posições de sujeito que perdura durante todo o período colonial.
Igualmente importante é a referência indireta feita às línguas européias através da nomeação das nacionalidades, que funcionam como categorias genéricas de conhecimento prévio. A designação brasiliens ou brasilians vai sendo significada no processo de construção de um paralelismo que coloca como já dada a relação “uma língua/uma nação” produzida pelo mundo europeu. Essa designação significa, ao mesmo tempo, o reconhecimento da cultura dos índios e um apagamento da diversidade lingüística, homogeneizando e neutralizando as diferenças entre as línguas indígenas. Ao lado disso, essa designação não referia aos filhos de portugueses, apagando o resultado inter-étnico de dois séculos de colonização.
No texto de Simone Delesalle e Francine Mazière há uma análise das diferenças entre as edições de 1656 e 1660 da Gramática de Irson, Nouvelle Méthode pour apprendre facilement les príncipes et la pureté de la langue française.
As autoras mostram como a publicação de 1660, embora não reconhecida como uma segunda edição – tanto pela menção “segunda edição” da publicação de 1662, quanto pela omissão de fichários e catálogos – é muito diferente da edição de 1656. A análise mostra como essa diferença se deve ao aparecimento da Gramática de Port-Royal (1660). Segundo as autoras, a edição de 1660 se constitui a partir de uma perspectiva port-royalista, mas para estudar uma língua específica, a língua francesa. Ao mesmo tempo, essa gramática também se situa no espaço dos estudos do léxico. Vale notar as diferenças entre suas listas de palavras e as de Vaugelas, em Remarques sur la Langue Française (1647), em relação à metalinguagem utilizada na descrição dos usos diastráticos e diatópicos. Enquanto em Vaugelas, navegante é definido como ‘Tous les gens de mer disent navigueur’, em Irson encontra-se ‘Naviger se dit à la Cour’. As formulações do tipo se diz em, se diz de, ressaltam Delesalle e Mazière, serão a ossatura das exposições em dicionários monolíngües do fim do século. A obra de Irson pode ser considerada, conforme escrevem, “como uma ligação não reconhecida no processo de análise que religa os trabalhos de Port-Royal à elaboração do Dicionário da Academia”.
Fechando a primeira parte, destinada aos estudos que recobrem as produções dos gramáticos latinos aos ideólogos, está o artigo de Gerda Haßler. Seu trabalho questiona as posições sobre as idéias lingüísticas sustentadas sob um ponto de vista continuísta e discute o lugar dado aos ideólogos como representativo de uma transição do pensamento.
A autora analisa séries de textos – como cópias de cadernos que os professores das Ecoles Centrais ditavam para seus alunos, conferências dos ideólogos e debates que elas suscitaram na Ecole Normale – aproximando-as dos textos de referência que os ideólogos produziram.
Ela observa, em suas análises, como é freqüente o não reconhecimento à teoria de Condillac no discurso de ideólogos como Garat e Sicard, que procuram marcar sua independência deste e de qualquer outro autor precedente. Segundo Haßler, a busca de distanciamento desses autores está relacionada à necessidade de romper com o ensino mecânico que enfocava a memória e imitação, para poder tratar do método analítico. Ao mesmo tempo, a partir da idéia da vulgarização do conhecimento repousando sobre um método justo e simples, tentava-se evitar o reducionismo das últimas obras de Condillac, o que acabou levando a um reducionismo discursivo, restrito à consideração de alguns conceitos fundamentais.
Com a produção dos materiais didáticos ao lado das conferências, aulas e debates entre os ideólogos e seus alunos, constrói-se a necessidade de referência a esses autores “esquecidos”, ao mesmo tempo em que uma terminologia se constitui. Esse processo mostra como determinados textos passam a significar como representativos de uma série, tornando-se, desse modo, textos de referência.
O primeiro texto da segunda parte, que abrange os estudos lingüísticos produzidos durante os séculos XIX e XX, é o de Marli Quadros Leite. O objetivo da autora é encontrar elementos da hiperlíngua brasileira a partir de marcas empíricas da língua falada no Brasil, extraídas de gramáticas do século XIX. Para Leite, embora essas gramáticas não tenham como objetivo descrever a língua efetivamente realizada, suas descrições registram traços dessa realidade.
Tais traços são observados nas descrições que os gramáticos fazem sobre as especificidades da fala brasileira, como em João Ribeiro, no exemplo: “É usual no Brasil: vi ele, encontrei ele – modos de dizer arcaicos como se vê de exemplos da era ante-clássica, nos documentos dos séculos XIII a XV, fato hoje reconhecido pelos proprios filólogos portuguezes”. A autora nota que esses traços são encontrados, sobretudo, nas queixas sobre o “mau uso” lingüístico praticado por pessoas não educadas, como em Maximino Maciel, no exemplo: “A posição errônea das formas pronominais – me, te, se, nos, vos, o, a, os, as, lhe, lhes, em desacordo com as normas da sintaxe observada”. Para Leite, seu estudo sobre a presença da hiperlíngua em gramáticas “permite, por um lado, que as pessoas tenham uma idéia da realidade lingüística em um momento e, por outro, aos pesquisadores estudar fatos que inicialmente parecem desvios e então se tornaram normais, de acordo com a perspectiva tradicional”.
O texto seguinte, de Margarida Petter, toma como material de análise charges produzidas pela Revista Ilustrada para analisar as mudanças no modo de representação da língua dos negros no contexto da abolição da escravatura.
A autora chama a atenção para uma reprodução estereotipada da língua falada por diferentes camadas sociais e por diferentes grupos étnicos nas charges anteriores à abolição: enquanto a língua dos escravos se caracteriza pela quebra das regras de concordância, o branco fala um português mais “europeizado”. Já nas charges publicadas após a abolição, vê-se uma re-configuração do falar dos negros, produzida pela divisão entre urbano e rural, assim como pela situação econômica. De um lado, o trabalhador negro que vive no campo mantém as quebras de concordância e é significado como estrangeiro, como africano. De outro, o negro com muito dinheiro e que vive nas cidades “fala como um branco”.
Petter observa que junto a essa aquisição/apropriação rápida da língua padrão pelo negro, restam formas indissociáveis de sua imagem na língua, como ‘Pai Zuzé’, entre outras. Ao lado disso, a autora acrescenta que as falas das charges colocam sempre em foco o problema de adaptação à vida em sociedade, na qual o negro continua a ser significado pela falta.
O texto de Ekaterina Velmezova apresenta um estudo sobre as especificidades da teoria do lingüista russo Nicolai Marr a partir do conceito de evolução suspensa, levando em conta as condições de produção do conhecimento na União Soviética. Nesse estudo, a autora questiona a posição de historiadores da lingüística que consideravam a produção de Marr como um fraco e frágil eco da lingüística alemã do século XIX.
Na teoria marrista, a evolução da língua pressupõe estágios determinados por características sócio-econômicas das sociedades correspondentes, refletindo o nível de desenvolvimento de seus modos de produção e resultando numa visão de mundo particular. Na passagem de um estágio a outro, o estágio anterior tem suspensa sua evolução, mas continua co-existindo na língua em seu novo estágio. Velmezova destaca outro aspecto que diferencia a perspectiva marrista dos trabalhos produzidos por Schlegel e Humboldt. Ela observa que para os lingüistas alemães os limites entre os estágios do desenvolvimento das línguas são sempre exteriores a elas, sendo relacionados à evolução do espírito humano. Os lingüistas soviéticos, por sua vez, os viram em seu exterior, no desenvolvimento dos modos de produção, mas também em seu interior, nos níveis fonético, morfológico, sintático e semântico, podendo ser localizados pela observação dos elementos dos estágios precedentes que tiveram sua evolução suspensa na língua.
O trabalho de Plínio Barbosa recorda a natureza das contribuições do barão von Kempelen para os estudos de fonética experimental e síntese de fala. Partindo de um exame sobre o processo de construção da máquina falante e das fontes usadas por Kempelen para construí-la, Barbosa contesta a afirmação de Fagyal (2001) de que teria sido o século XVII que conduziu à invenção da máquina falante automática. Barbosa defende o nome de Kempelen como o predecessor desses estudos, no século XVIII.
As fontes apontadas no texto, consideradas como o ponto de partida para Kempelen construir sua máquina, são as publicações sobre fisiologia humana de Dodart e Haller, ambas do século XVIII. Já a performance da máquina é atribuída à habilidade de Kempelen como construtor de autômatos e por uma longa fase de tentativas, que durou vinte anos, até a versão final da máquina em 1791. A descrição da máquina e das etapas de sua construção foram apresentadas minuciosamente por Kempelen em seu livro, da mesma data.
A análise que Barbosa faz dessa obra mostra como o processo de construção da teoria e do modelamento estão inter-relacionados, sendo indissociáveis, o que justifica, desse modo, o fato de essa máquina ser considerada única em seu tempo, sem predecessores.
O artigo de Paul Laurendeau critica a perspectiva positivista presente na lingüística e na filosofia da linguagem, considerando os estudos de Bloomfield e Chomsky como herdeiros do “escolasticismo cienticista do século XX”. O autor sugere que “a passagem de Bloomfield à Chomsky não é nada mais do que a passagem do positivismo ao neo-positivismo no desenvolvimento específico da lingüística”.
Em suas análises sobre esses lingüistas ele observa que a posição anti-mentalista de Bloomfield exclui a semântica de sua lingüística descritiva por tomá-la como uma mera manifestação do subjetivismo mentalista, mas a real motivação dessa exclusão é a ânsia positiva de que a descrição lingüística seja científica. Ao lado disso, observa que a exclusão da semântica no mentalismo de Chomsky também é motivada pelo modelo de uma ciência positiva.
Laurendeau propõe, considerando a língua como social e ao mesmo tempo dependente da mente, que as ciências da linguagem olhem para a especificidade de seu objeto a partir de uma revisão completa do método de aproximação desse objeto, “mesmo que essa revisão conduza a uma drástica tábula rasa”.
O trabalho de Jacqueline Léon examina as várias versões dos métodos de construção da máquina de traduzir, produzidas entre as décadas de 1950 e 1970 pelos membros da Unidade de pesquisa da língua de Cambridge – CLRV. A autora mostra como o processo de automatização da tradução e de implementação de uma concepção específica do sentido levou à modificação da noção de língua universal, baseada nos esquemas das línguas universais do século XVII, para a idéia de uma língua intermediária.
Léon começa lembrando que o primeiro projeto do CLRV, chamado Nude, buscava resolver ambigüidades através de uma interlíngua, uma “rede de idéias nuas”, que suprimisse as características distintivas da estrutura da língua fonte e que mantivesse as redes semânticas invariantes. Já outra versão proposta posteriormente para o Nude colocou em questão o fato de que essa interlíngua pudesse ser uma língua universal, mas que deveria ser uma língua genuína, capaz de lidar com problemas de sentido como metáforas. A hipótese para o novo Nude é a de que haveria um “estoque” de contextos extralingüísticos, que poderiam ser representados por uma enciclopédia e compartilhados por pessoas de culturas bastante diferentes. A autora lembra, por último, que o trabalho do CLVR teve continuidade nos EUA no fim da década de 1960, com a proposta de uma semântica preferencial, a partir da qual seria possível observar, em um texto dado, um sentido específico escolhido preferencialmente a outro. Desse modo, a escolha de um sentido ou outro dependeria sempre do texto.
O trabalho de T. Craig Christy toma como objeto de estudo a questão da ausência na teoria de Saussure. Ele observa que a ausência tem uma larga presença na teoria saussuriana, de modo geral, não se restringindo apenas à exposição dos princípios gerais presentes no Cours.
A esse respeito, ele recorda o trabalho de Saussure sobre os sons do indo-europeu, de 1878, que focaliza a ausência material dos sons, registrada sob a forma de irregularidades fonéticas existentes, afetando a qualidade e a quantidade das vogais em todas as línguas descendentes do indo-europeu. Christy acrescenta que esse estudo marca uma diferença fundamental com as reconstruções comparatistas do indo-europeu, para as quais a ausência em questão era a de determinados sons que podiam ser encontrados em outras línguas da mesma família. Ao lado desse trabalho, são lembradas as análises de Saussure sobre a glossolalia de Hélène Smith, definida pelos lingüistas em geral como um sanscritóide. O autor nota que essas análises focalizaram a questão da ausência do som f que, de fato, não existia em sânscrito. Os anagramas de Saussure também são, para Christy, estudos em que se vê a questão da ausência ser trabalhada: os sons repetidos regularmente nos anagramas eram um dispositivo para a reconstituição de uma palavra ou de um nome próprio que não estavam no texto, mas que eram implicados por ele.
O texto de José Luiz Fiorin reflete sobre a constituição das primeiras orientações da pesquisa em lingüística na USP, a partir do momento de criação da Faculdade de Letras em 1934, percorrendo a evolução das cadeiras até o ano da reforma dos cursos de Letras de 1962. Suas reflexões passam pelo exame das cadeiras de Línguas Estrangeiras, Letras Clássicas, Tupi Guarani, Filologia e Língua Portuguesa, e Lingüística Românica e Glottologia Clássica. Nessas duas últimas, conforme nota Fiorin, a pesquisa lingüística propriamente dita foi mais amplamente desenvolvida.
Ele observa que no primeiro programa de Filologia e Língua Portuguesa a orientação era notadamente histórica e objetivava estudar a evolução do português a partir de textos, mantendo-se nessa linha com a nomeação de Silveira Bueno como catedrático em 1940. E que, ao mesmo tempo, também havia um interesse pela Geografia lingüística, a partir de uma tradição portuguesa, com os estudos de Leite de Vasconcelos e Carolina M de Vasconcelos. Já na cadeira de Lingüística Românica e de Glottologia Clássica, Fiorin observa que a orientação era histórico-comparativa, ocupando-se de estudos do indo-europeu. E acrescenta, ao lado disso, que seu professor titular, T. Maurer, foi o responsável pelo início dos estudos da lingüística moderna nessa cadeira, ressaltando que “essa será a base para a formação de toda uma geração de lingüistas que estão hoje em atividade em diferentes universidades brasileiras”.
O trabalho de Suzy Lagazzi busca compreender o processo de legitimação científico-institucional da disciplina Lingüística em meio ao movimento de gramatização brasileira do português, definindo os livros Princípios de Lingüística Geral e História e Estrutura da Língua Portuguesa, de Mattoso Câmara, como ponto de partida para sua análise. O objeto de discussão é a nomeação “língua portuguesa” frente à institucionalização da lingüística e a pergunta que a autora faz é sobre o recorte que configura na memória discursiva o percurso da legitimação científico-institucional nos estudos sobre a língua no Brasil.
Sua análise dessas obras mostra que a designação ‘língua portuguesa’ aparece significando de maneiras diferentes nos dois livros desse famoso lingüista. No primeiro livro, a língua portuguesa aparece como um sistema (marcando a tendência estruturalista) ao lado de outros, sistema que funciona como exemplificação. Já no segundo livro, a língua portuguesa continua sendo considerada como um sistema, porém não mais ao lado de outros. Lagazzi observa que o importante para o surgimento de um espaço de legitimação científica da Lingüística e sua institucionalização é que a língua portuguesa também aparece como lugar de descrição lingüística, produzindo, desse modo, o lugar do analista. E, ainda, ela “fica significada como a própria instituição científica que possibilita a Lingüística e os estudos lingüísticos no Brasil”.
Finalizando a parte que trata da lingüística nos séculos XIX e XX, temos o texto de Rosa Attié Figueira, que faz um percurso histórico sobre a representatividade dos dados anedóticos para o domínio da Aquisição da Linguagem. Nesse percurso, a autora destaca os registros em diários e gravações feitos antes mesmo da constituição da Aquisição da Linguagem como uma disciplina, passando pelos próprios trabalhos e os de outros colegas no interior da disciplina.
Ao buscar uma definição para o sentido de anedótico, Figueira não evita a duplicidade de seus dois sentidos básicos listados no dicionário: “engraçado, pitoresco, curioso” e “único, típico da história pessoal de alguém”, servindo-se dessa duplicidade para poder abranger as várias dinâmicas dos dados anedóticos.
A questão colocada em seu estudo é: qual é a participação de dados desse tipo na pesquisa em aquisição do português como língua materna?  As reflexões da autora sobre essa questão trouxeram valiosas contribuições para a área de Aquisição da Linguagem. Um exemplo disso é sua pesquisa sobre as marcas não usuais de gênero/sexo nas falas das crianças, que destaca o poder heurístico desse material anedótico e mostra como essas marcas podem ser vistas como um reflexo da identidade sexual do sujeito e como parte do processo de constituição da subjetividade.
O primeiro texto das sessões plenárias é o de Maria Helena de Moura Neves, que reflete sobre a experiência grega da linguagem, percorrendo a poesia de Homero, Hesíodo e Píndaro, a tragédia, e a filosofia de Platão, Aristóteles, e dos estóicos. Ao lado disso, a autora toma a dicotomia analogia/anomalia como ponto central para uma investigação histórica que chega até a lingüística de Saussure.
Neves destaca a distância entre as experiências de linguagem dos gregos e as nossas: enquanto para Homero a poesia representava a linguagem se fazendo, para nós o dizer é uma atividade que contrasta e mesmo entra em conflito com o fazer. Seu percurso analítico nos mostra os deslocamentos de sentido que foram se fazendo na experiência grega, relacionados às palavras e às coisas, ao dizer e ao fazer, permitindo-lhe afirmar que é a própria experiência poética da linguagem que torna possível a filosofia, a qual vem justamente fazer o discurso crítico da poesia.
Caminhando pelo campo filosófico, Neves vislumbra a busca dos estóicos pela conformidade da linguagem com a natureza, que os levou da analogia para a anomalia. A autora nota como a tensão entre analogia e anomalia, discutida a partir de pressuposições e direções muito diferentes, é sempre determinante nos estudos gramaticais e ressurge como ponto focal de investigação dos estudos lingüísticos, através da oposição entre analogia e uso.
O artigo de Kurt Jankosky se detém sobre a vida de Joahnn Jacob Reiske e seu papel no estabelecimento da erudição oriental e clássica na Alemanha. O autor começa por observar que as investigações sobre as línguas clássicas como o latim, o grego e o hebraico tinham uma longa tradição no campo dos estudos bíblicos, e isso possibilitou, posteriormente, conduzir a fundação de um estudo independente e auto-suficiente dessas línguas. Ele lembra que embora as universidades alemãs não tivessem infra-estrutura adequada para o estabelecimento das cadeiras de latim e de grego, havia uma tendência para aceitar o desafio. E que, além disso, houve contribuições de pesquisadores não vinculados a universidades, como era o caso notável de Reiske, que produziu inúmeras publicações tanto no campo dos estudos clássicos, como no campo dos estudos árabes. Jankosky ressalta que ele foi considerado como “um dos primeiros, senão o primeiro erudito grego do século XVIII” e como o “verdadeiro fundador da filologia árabe”.
Entre os diversos aspectos do percurso intelectual de Reiske descritos por Jankosky está a necessidade desvincular os estudos árabes de seu relacionamento com a filologia sacra e, ao mesmo tempo, cessar de subordiná-los às exigências de investigação do grego, latim e hebraico.
O trabalho de Hans Aarsleff estuda o contexto e o sentido da formulação de Humboldt, apresentada na introdução da obra Ueber die Kawi-Sprache auf der Insel, que considera a língua como uma atividade (energeia) e não como um produto (ergon): ‘Sie ist kein Werk (Ergon), sondern eine Tätigkeit (Energeia)’. Seu estudo se desenvolve a partir de uma minuciosa história das fontes, levando em conta a relação de convivência intelectual estabelecida entre Humboldt e Garat e examinando formulações presentes nos textos do próprio Garat e de outros autores como Condillac, Diderot e Beauzée.
Dentre várias questões trazidas pelo autor nessa história, vale destacar a questão das inversões nas línguas declináveis, discutida por Garat, a partir de uma filiação à Condillac. Aarsleff observa que o efeito criado pelas inversões é tratado por Condillac num capítulo de seu Essay, que o chama de “vivacidade”. Esse efeito é concebido como energia no Lettre sur les sourds-et-muets de Diderot e em outros escritos, para tratar da concepção estética da língua. Tal conceito ganhou uma entrada na Encyclopédie méthodique. Grammaire & Littérature de 1782, redigida por Beauzée. A entrada cita exemplos analisados por Condillac para a inversão e apresenta a distinção entre energeia e ergon.
O trabalho de Aarsleff, ao mesmo tempo em que aponta para o papel decisivo que teve o conceito de energeia em diversos aspectos da teoria humboldtiana sobre a língua e sua relação estreita com a cultura, mostra como isso se deve a reflexões produzidas por esses outros estudiosos da linguagem.
O texto de Eni Orlandi analisa a noção de estrutura e estruturalismo no Brasil em textos que caracterizaram uma tradição própria na história dos estudos da linguagem nas condições específicas da história brasileira.
No percurso de compreensão dessa história, a autora distingue momentos cruciais. Um deles dá-se no Rio de Janeiro, com a formação da lingüística pelo estruturalismo, conectada a autores como Mattoso Câmara, que preservam a relação sincronia/diacronia, forma interna/forma externa, língua/cultura, som/sentido. Um outro momento apontado por Orlandi tem sua configuração em São Paulo, com um forte investimento na sincronia, forma e língua, a partir dos estudos de T. Maurer e de sua abertura para a institucionalização do estruturalismo na lingüística.
Dentre as inúmeras compreensões produzidas pelas análises da autora sobre esses dois momentos, é interessante notar sua observação de que a herança da produção de Mattoso ecoou mesmo para estudiosos brasileiros (e a própria autora se inclui entre esses estudiosos) que não o leram em sua formação lingüística, mas leram Saussure, Hjelmslev e Martinet.
Ao lado disso, dentro de uma perspectiva discursiva que se opõe a uma concepção de “(história da) ciência com seus conteúdos pressupostos como fatos consumidos”, ela discorda, por exemplo, da afirmação de Sartre de que o estruturalismo seria a última barreira que a burguesia levantou contra o comunismo. Ser estruturalista no espaço científico brasileiro nas décadas de 1960 e 1970 significava, dentre outras coisas, resistir à irracionalidade da ditadura: “Ideologicamente, na USP na década de 1960, éramos estruturalistas porque éramos de esquerda”, “no entanto, o que era visível aos lingüistas era que o estruturalismo começava outra história intelectual explícita para o estudo da língua (no sentido mais largo e mais geral) e para as ciências humanas, como os cursos de Letras que começavam a ser implementados naquele tempo, no Rio de Janeiro e em São Paulo”.
Finalizando a parte das sessões plenárias está o texto de Sylvain Auroux, que traça um balanço dos avanços dos trabalhos sobre a história dos estudos da linguagem, desde a primeira ICHoLS, em Ottawa, 1978.
Uma primeira constatação de Auroux é o aumento expressivo de produções na área, ao lado da produção de revistas especializadas, da criação de laboratórios e grupos de pesquisa em várias partes do mundo. Sobre esse aspecto, o autor comenta: “dizer que há um crescimento exponencial, é, como sempre, testemunhar uma institucionalização”, para em seguida perguntar: “o que mudou nesses 25 anos ao nível de conteúdo dos conhecimentos?”, “O que é um resultado em matéria de pesquisa em história das teorias lingüísticas, como podemos avaliar nosso trabalho?”.
Em seu balanço, Auroux nota como a paisagem desses estudos mudou de uma visão exclusivamente ocidental para a abertura sobre outras tradições, tornando acessíveis novas fontes, produzindo outras e resultando num novo quadro de referência para a história global. Um aspecto interessante a destacar dessas reflexões é que, segundo o autor, a visibilidade de fenômenos antes desconhecidos permitiu considerar que “há ciência da linguagem em longo termo”, enquanto que nas décadas de 60 e 70 não se colocava nem mesmo a questão de saber o que significava a palavra “lingüística”.
O percurso da história traçado pelo conjunto desses vinte textos apresenta uma diversidade expressiva de temas, questões, metodologias e posições teóricas, sustentados por nomes de disciplinas que não são os mesmos. Em nossa história, “a” história se vê predominantemente dividida entre os nomes lingüística e ciência(s) da linguagem, que convivem emparelhados desde longa data, sem que por isso signifiquem do mesmo modo. Através destes e de outros nomes, enunciados nesses trabalhos, vemos com prazer que o conhecimento sobre a língua e a linguagem conheceu caminhos bastante produtivos.
A diversidade desses caminhos de produção do conhecimento está relacionada, incontornavelmente, aos diferentes lugares onde ele se faz. A esse respeito, cabe ressaltar a relevância histórica da realização da IX ICHoLS no Brasil, em 2002. A realização desse congresso na USP e na Unicamp, ao mesmo tempo em que  proporcionou a divulgação e a circulação do conhecimento sobre a história dos estudos da linguagem de diferentes países, permitiu reforçar o lugar da produção científica brasileira nesse cenário internacional. Aqui não poderia deixar de mencionar o papel do Programa História das Idéias Lingüísticas no Brasil (acordo Capes/Cofecub), que vem permitindo ampliar, cada vez mais, a interlocução entre pesquisadores de diversas instituições do Brasil e do exterior. A publicação dessa edição de History of Linguistics é, nesse sentido, um precioso retorno desses esforços conjuntos.

Ana Claudia Fernandes Ferreira*

* Ana Claudia Fernandes Ferreira é doutoranda em Lingüística no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.

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