Resenha

ORLANDI, Eni. Língua brasileira e outras histórias. Discurso sobre a língua e a escola no Brasil. Campinas: Editora RG, 2009, 202 pp.

LÍNGUA BRASILEIRA: CONSEQÜÊNCIAS  
DO PENSAR/DIZER DIFERENTE

Ser falante de uma língua pode soar como algo óbvio. A evidência pela qual afirmamos, atualmente, uma identidade lingüística torna natural o sentido de que nascemos para falar uma língua. É como se estivéssemos diante de uma relação de equivalência: o francês é aquele que fala (e escreve supostamente com competência lingüística) o francês; o inglês, o inglês; o espanhol, o espanhol; o português, o português; e, assim por diante, em uma quase relação de sinonímia ou de homonímia entre ser (português), falar (português) e pensar ser (português). E se nos arriscarmos a perguntar qual a língua falada pelo brasileiro? Muitos terão o português na ponta do que julgam ser a língua própria do brasileiro. Porém, dizer – ou pensar – (a/em) língua brasileira pode deslocar a razão de uma naturalmente óbvia identidade lingüística e trazer, como conseqüência, sentidos diferentes, se considerarmos a espessura histórica da(s) língua(s) falada(s) por nós, brasileiros.
Diante do risco de se colocar em questão a razão pela qual uma língua soa naturalmente própria aos falantes, a diferença é sintoma de que, para se falar da ordem de uma língua, é preciso implicá-la às conseqüências de sua inevitável inscrição na história. Quando a diferença não se trata apenas do reconhecimento da possibilidade da (des)igualdade lingüística, mas resulta da relação constitutivamente contraditória e, portanto, fundadora da divisão dos sentidos e dos sujeitos na ordem do discurso, um sintoma pode ser levado às últimas, ou melhor, levar a muitas conseqüências, como descreve Eni Orlandi em Língua Brasileira e outras histórias. Na reunião de diversos estudos, a forma material, vista como materialidade histórica, permite perceber, na relação entre estrutura e acontecimento, a irrupção de um novo sentido da/na língua: o que é próprio ao brasileiro no discurso sobre o fato lingüístico.
A coletânea das muitas (outras, como sugere o título) histórias, aparentemente desconexas, é atravessada pelo duplo gesto de interpretação, que funciona como o fio condutor ao remeter a falha do/no fato lingüístico à ruptura, sobretudo a partir do século XIX, na ordem dos discursos sobre a(s) língua(s) do/no Brasil. Para entender a dimensão histórico-discursiva da ruptura, Orlandi considera, sem se deter detalhadamente, o processo, por ela já tratado em obras anteriores, de submissão a Portugal pela política de colonização lingüística.
O duplo gesto de interpretação deve ser visto em diálogo com o movimento responsável pela fundação, no Brasil, da Análise de Discurso (AD) e da História das Idéias Lingüísticas (HIL). Há aproximadamente três décadas, o encontro entre os dois campos vem produzindo gestos teóricos para “a observação da língua em seu saber e seu sentido na história das idéias e na conjuntura política” (ORLANDI, 2009: 11). A proposta não nasce para contar a história de conceitos ou de um campo disciplinar, como já vinha sendo feito por teóricos filiados a correntes para as quais a história funciona como um princípio ordenador de uma narrativa linear e contínua. De outro modo, com o foco na história das idéias e na história da língua e com filiação na teoria do discurso, busca-se explicar a exterioridade constitutiva da linguagem, sustentando, pela história, a contraditória descontinuidade dos sentidos e dos sujeitos. É inaugurado aí um gesto de interpretação fundamentado na necessidade de compreensão do funcionamento do político no trabalho cientificamente e/ou politicamente produtivo sobre e pela língua em diferentes formações sociais.
Dessa forma, o duplo gesto de interpretação na obra de Orlandi se dá no encontro entre o trabalho de descrição da analista e os gestos de leitura presentes nos arquivos. Vale ressaltar que, para a teoria do discurso, o arquivo é visto como campo constituído a partir de um conjunto de documentos postos em relação por sua pertinência para análise de uma determinada questão. No caso da obra de Orlandi, o que norteia a reunião dos estudos apresentados é o espaço aberto para se pensar a língua falada pelo brasileiro a partir dos processos de colonização e de descolonização lingüística. Com isso, o corpus de análise é formado, sobretudo, por discursos sobre a linguagem, formulados ao longo da história intelectual/política do/no Brasil. O gesto teórico da analista aponta para o fato de que os gestos de interpretação presentes nesses discursos colocam em questão a língua aqui falada e, ao mesmo tempo, fazem circular representações sobre a sociedade.
Mas quais as conseqüências do saber que se sabe a própria língua? A produção e a circulação dos conhecimentos afetam a língua, em seu funcionamento na sociedade, pelo trabalho de “recobrimento-reprodução-reinscrição” de sentidos, o que acaba dando sustentação à formação do estado nacional e à constituição de processos de subjetivação do sujeito/cidadão brasileiro. Podemos ainda dizer que o duplo gesto de interpretação traçado por Orlandi demarca duas posições de autoria na reflexão teórica sobre a língua falada pelo brasileiro. Uma delas nasce do movimento teórico criado pelo encontro da AD com a HIL e, pelo viés discursivo, inaugura uma proposta brasileira para, na relação entre o simbólico e o político, pensar a história das idéias sobre a linguagem/lingüística no/do Brasil. A outra nasce no século XIX dos gestos de leitura presentes nas teorias sobre a linguagem que, ao reivindicar, o reconhecimento de uma ordem própria da língua falada no Brasil, leva à ruptura com o processo de gramatização da língua de/em Portugal.
O corpus heterogêneo, reunido ao longo da trajetória acadêmica de Orlandi, contribui para que seja possível perceber o trabalho de “produção-reprodução-transformação” sobre e pela língua. A coletânea de estudos apresenta elementos a partir dos quais é possível identificar a estruturação-desestruturação-reestruturação na rede sócio-histórica de filiação dos sentidos sobre a(s) língua(s) falada(s) no Brasil. Na confrontação da materialidade lingüística com a materialidade da história, na qual a língua se inscreve, desenvolve-se o tema central do livro: a irrupção do acontecimento discursivo da língua brasileira, resultado da descolonização lingüística pelo progressivo distanciamento, sobretudo nos últimos dois séculos, das gramatizações da língua de/em Portugal e da língua do/no Brasil. O afastamento espaço-temporal se deve, portanto, a distintos processos sócio-históricos de gramatização da(s) língua(s) que resultam em diferentes funcionamentos da(s) língua(s) nos dois países.
Não apenas pela estrutura heterogênea das análises e pela impossibilidade de um exato encaixe cronológico entre os estudos, deve-se evitar uma leitura do livro procurando estabelecer um quadro evolutivo na passagem de um capítulo a outro.  As diversas histórias que sustentam os sentidos do acontecimento discursivo da gramatização fazem ver, justamente pela descontinuidade, o funcionamento da contradição. Dizer/pensar língua brasileira demanda compreender o funcionamento da contradição como a instauração no discurso da divisão/diferença, ao mesmo tempo em que é apagado aquilo que divide os sentidos e os sujeitos, tornando evidente a ilusão de unidade naquilo que imaginariamente se individualiza pela divisão. Pelo político, que se materializa no funcionamento da contradição, é possível perceber que o lugar de produção da imaginária unidade da língua corresponde ao lugar de produção da diferença. Se por um lado, as análises de Orlandi mostram que o trabalho científico e/ou político leva à regularização e à hegemonia de certas línguas (e não outras), pela fixação de limites para os sentidos e para os sujeitos no aparelho jurídico-administrativo capitalista, por outro, a divisão que funciona pela contradição mostra-se produtiva, pois qualquer tentativa de se formar, nomear, descrever, separar o um, é atravessada pelo outro, divisão esta que se mostra indissolúvel na ordem do discurso.
Para explicar a tensão que se estabelece pela relação contraditória entre a unidade, entendida como os limites imaginários fixados pelas teorias, e a dispersão, os des-limites da língua em seu funcionamento, Orlandi retoma de si dois conceitos: língua imaginária e língua fluida. O primeiro diz respeito aos “objetos-ficção”, aos sistemas, às regras estabilizadas propostas pelos especialistas que fixam, de forma imaginária, a relação entre o sujeito e a língua. É o caso do português oficial normatizado. A fluidez pela incompletude da língua marca a possibilidade do contínuo movimento na história e na sociedade. Para Orlandi (2009, p. 12), o ponto de partida para a análise discursiva é a falha/ruptura na língua:

Para a teoria do discurso, a língua tem sua unidade, sua própria ordem, com a diferença que não é uma unidade fechada: a língua é sujeita a falhas e é afetada pela incompletude. Ela é, como diz P. Henry (1975), “relativamente autônoma”. Como tenho dito muitas vezes, o lugar da falha e a incompletude não são defeitos, são, antes, a qualidade da língua em sua materialidade: falha e incompletude são o lugar do possível. Daí a diferença, a mudança, o equívoco.

Nessa perspectiva, a falha não deve ser vista como desvio na ordem própria da língua, mas como condição para, na ordem do discurso, ser formulável um novo sentido, o brasileiro e o nacional. Orlandi mostra, a partir dos pontos de ruptura/falha, o processo de “produção-reprodução-transformação” que permite falar da língua brasileira. Ao trabalhar a tensão entre a unidade imaginariamente estável das teorias da linguagem e os des-limites da língua em funcionamento, a autora mostra como, em diferentes momentos da história e em distintas formações sociais no Brasil (colônia, império, estado nacional, economia globalizada), os gestos de interpretação, nos discursos político-científicos sobre a língua, funcionaram/funcionam na administração dos sentidos e dos sujeitos no trabalho sobre e pela língua. Nos discursos dos gramáticos, dos lingüistas, dos especialistas em linguagem, dos legisladores, dos administradores públicos, dos políticos, projetam-se diferentes posições-sujeito inscritas nas formações discursivas que, por sua vez, determinam o que é possível de ser formulado/dito.
Se no período da colonização lingüística, a catequização e a gramatização atenderam à necessidade de administrar/domesticar a alteridade, no momento da descolonização lingüística, a gramatização e a escolarização reivindicam o reconhecimento da distinção entre a ordem da língua portuguesa e a ordem da língua brasileira para a afirmação de uma identidade nacional. Como ressalta Orlandi, essa questão se materializará em diversos acontecimentos, como a criação de academias e regulamentos para educação como forma de legitimar a diferença. Uma vez reconhecida a independência da língua, proliferam-se os instrumentos lingüísticos como forma de afirmação da nação e de organização do espaço social em processo de urbanização. Desenvolve-se a produção intelectual, primeiramente, com as atividades dos literatos e dos gramáticos e, posteriormente, dos lingüistas. As diferenças internas colocam-se como marcas da pluralidade, diversidade lingüística. Mais recentemente, em um espaço dito globalizado, paralelamente ao reconhecimento da diferença pelo multilingüismo face à língua oficial, se coloca a ordem trans-nacional da língua, projeto lingüístico para atuação externa.
Língua brasileira nos oferece um importante percurso para compreendermos o processo sócio-histórico que resulta na constituição da língua nacional brasileira. Ao contrapor a materialidade da língua à materialidade da história, Orlandi apresenta, como o faz em outras de suas obras, um gesto teórico de interpretação que relaciona o simbólico ao político. Os acontecimentos discursivos da língua brasileira e da autoria brasileira na teorização da própria língua abrem importantes espaços para a reflexão sobre as conseqüências do pensar/dizer diferente.

Angela de Aguiar Araújo
Doutoranda em Lingüística – IEL/UNICAMP

 

 

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