Resenha

 

ESTUDOS SOBRE A LÍNGUA POLÍTICA:
FILOLOGIA E POLÍTICA

NA FLORENÇA DO SÉCULO XVI


Zancarini, Jean-Claude; Fournel, Jean-Louis;

Descendre, Romain.
Campinas: RG Editora / Cáceres: Editora da UNEMAT,
2008, 208 pp.

 

Estudos sobre a língua política: filologia e política na Florença do século XVI reúne artigos de três pesquisadores franceses do laboratório Triangle (UMR 5206), da Ecole Normale Supérieure Lettres et Sciences Humaines de Lyon.
Trata-se de uma obra importante que dá a conhecer aos pesquisadores em Ciências Humanas no Brasil um modo particular e inovador de fazer a história das idéias – neste caso, das idéias políticas – e reinterpretações de leituras estabelecidas de autores fundamentais para o pensamento político ocidental moderno.
Para as Ciências da Linguagem, há um interesse particular no método estabelecido pelos autores, que analisa o pensamento político pela língua presente nos textos, a partir da qual reconstrói as relações semânticas que os compõem, tomadas elas mesmas como relações políticas. É o que afirma Jean-Claude Zancarini no primeiro capítulo, Uma filologia política: os Tempos e as Manobras das palavras (Florença, 1494-1530), quando explica por que o método é denominado Filologia Política:

Então, “filologia” porque partimos de uma leitura (às vezes de uma tradução, forma particularmente rigorosa da leitura!) lenta e minuciosa que procura re-estabelecer os laços, os ecos, os distanciamentos no interior de uma obra ou entre uma obra e outra; “política”, não somente porque nós escolhemos estudar um corpus de textos ligados a uma conjuntura política e militar precisa mas também porque, para nós, a abordagem crítica dos textos e a reflexão sobre o sentido das palavras utilizadas na linguagem têm um valor eminentemente político, qualquer que seja o período utilizado (p.11). 

Segundo Zancarini, o objeto da pesquisa conjunta da qual os artigos que compõem o livro são resultado é a escritura da política e da história de Florença, do fim do século XV até a queda da república em 1530, período que se pode qualificar como das guerras da Itália. A Filologia Política é ilustrada neste primeiro capítulo pela reflexão sobre um dos termos centrais da tradição florentina: libertà.
No segundo capítulo, Tradição Republicana e a República Nova em Florença: Guicciardini e a Libertá Fiorentina, libertà é novamente objeto de análise, desta vez na obra de Francesco Guicciardini.
Zancarini conta que o termo libertas, surgido na Itália no século XII, ganha uma formulação jurídica no século XIV e culmina em um jogo político no fim deste século e no início do século XV, quando em Florença dois chanceleres da república utlizam esse termo na sua política contra os duques de Milão e contra o papa (p. 22).
Este capítulo destaca o poder de fogo da palavra e analisa o conceito de libertas em dois momentos. O primeiro, descrito no parágrafo anterior, é o da virada para o século XV; o segundo se inicia quando os Médicis, de volta ao poder, redefinem o conteúdo teórico da libertas florentina, entre os meses de janeiro e fevereiro de 1536, em uma querela jurídica.
Ao refletir em seus textos, sobre a libertas florentina, Guicciardini reflete sobre a cidade e os cidadãos de Florença em “sua alma” e “seus humores”, o que amplia o seu modo de compreensão da liberdade, fazendo dela um conceito prático, que o permite compreender e criticar categorias como “o povo” e a propor formas e instâncias de poder.
Em “Tirem Brutus da cabeça” - tiranicida e direito de resistência na Florença de Coluccio Salutati a Donato Giannotti, Jean-Claude Zancarini e Jean-Louis Fournel mostram como duas denominações – tiranicida e direito de resistência – estão imbricadas no pensamento da cité florentina. No percurso que vai de Salutati a Giannotti, passando por Savonarola, Maquiavel e Guicciardini, os autores mostram como o direito de resistência é diluído ao mesmo título em que o tiranicida romano exemplar – Brutus – é evocado; uma combinação que serve, em cada autor, ao propósito de manutenção do regime político do seu tempo.
Um exemplo é o primeiro texto examinado – o tratado De Tyranno (1400) de Coluccio Salutati, que discute a questão do tiranicida a partir da condenação ao inferno de Brutus e Cássio em uma obra literária: O Inferno, de Dante Alighieri. Salutati aprova a condenação dos dois tiranicidas, porque estes tinham matado um “príncipe legítimo”. O florentino sustenta que o Imperador romano é um homem bom – um vir bonus, e um monarca legítimo, ao defender que a monarquia é preferível às formas livres de governo quando – estabelecida com o acordo ao menos tácito do povo – ela permite evitar a guerra civil e a discórdia.
Com esta solução, Coluccio Salulati rompe livremente com a tradição republicana florentina que opõe libertas [liberdade republicana] e tirania. (...) (p.39). Sua posição, analisam os autores, serve à conjuntura da época: a afirmação da possibilidade de “resistir” às regras jurídicas precisas é sustentada pela subordinação do político ao jurídico e poderia ser, então, uma forma de tornar ilegítimas revoltas e tumultos (p.40). O poder é mantido nas mãos de quem já o detém.
Fragmentos de sentidos: a presença dos Ricordi na escritura de Francesco Guicciardini é o título do quarto capítulo, de Jean-Claude Zancarini. Nesta parte do trabalho, os estudos se voltam para a tradução dos Riccordi e de dois outros textos políticos importantes de Guicciardini. O foco são os liames entre estes textos, mais explicitamente, a presença dos primeiros nos dois últimos.
Zancarini precisa o modo como opera a análise: ao considerar as formulações dos riccordi, identifica um permanente trabalho de reescritura e de acréscimos em Guicciardini (p.56). O foco na reescritura e nos acréscimos indicam o cuidado em mostrar como Guicciardini se preocupava em dar forma escrita às suas reflexões, num jogo incessante de retomadas de seus ricordi (ou suas “advertências” diplomáticas constituídas por reminiscências, lembranças, formas retóricas recorrentes que ele usa para pensar num momento dado).
Por meio das análises, o autor elabora uma periodização do percurso reflexivo de Guicciardini; o primeiro momento é do processo contínuo de reescrita por proximidade e contaminações sucessivas; o segundo é o da reescrita completa e o terceiro é da nova reescrita. O autor propõe então uma metáfora definidora deste percurso do pensamento de Gucciardini. Para ele, os ricordi são pequenos clarões que permitem abrir espaço nas trevas. Ainda, segundo ele, é a esta luz por meio da qual Guicciardini, no Dialogo del reggimento, interroga-se sobre a maneira de governar Florença, depois que tentou na Storia d’Italia, compreender e fazer compreender isso que foi a tragedia d’Italia. (p. 61)
Em A civilità em Florença no tempo das guerras da Itália: “alma da cidade” ou “espécie de tolice”?, Jean-Claude Zancarini e Jean-Louis Fournel examinam os sentidos de civilità a partir da sua relação com o adjetivo civile e a maneira como este aparece articulado em textos de pensadores florentinos da época das guerras.
Zancarini e Fournel se distanciam, por um lado, de uma interpretação homogênea e unívoca do que seria o momento republicano florentino, buscando neste momento da história diferentes republicanismos florentinos; por outro lado, eles se distanciam de uma interpretação em que os costumes civis são entendidos separadamente dos costumes políticos, o que não lhes parece ser possível distinguir de modo absoluto no contexto analisado.
Os autores mostram que as categorias civile e civilità, na sua articulação a outros elementos lingüísticos, são determinantes para dar visibilidade às diferenças nos republicanismos florentinos e ao modo como a república culmina no assassinato de Alexandre de Médici em 1537 e na ascensão ao principado por Cosme de Médici, momento a partir do qual

(...) os costumes e a participação no governo da cidade, em resumo a vida e a política, que se imbricam na civilità, são distanciados um do outro. O vivere civile não é mais senão o respeito passivo a uma lei ou a uma regra de cuja elaboração e promulgação o sujeito não participa mais. É sem dúvida aí que está a verdadeira morte da civilità florentina (p.90).

Os humores do corpo político: o povo e a plebe na obra de Maquiavel, de Jean-Claude Zancarini, é um capítulo fundamental do livro, em que se evidencia o interesse da análise semântica quando se faz um estudo da língua política. O autor toma por objeto o modo como a divisão política constrói uma semântica para o corpo da cidade. Analisa, assim, os usos e os jogos de sentidos das palavras povo e plebe na descrição do corpo político em duas obras específicas de Maquiavel: O Príncipe e os Discursos. Segundo ele,  

A forma como Maquiavel emprega as palavras povo [popolo] e plebe [plebe] ilustra uma necessidade, ou ainda uma dificuldade teórica, das quais a dificuldade terminológica é um indício. É a necessidade de descrever o corpo político, de dar um nome aos seus componentes e de pensar de que forma podemos estabelecer amizades e alianças que permitem à cidade manter-se unida e estável (p.91).

Na história política da cidade, o que sustenta as relações entre esta e os sujeitos, com suas diferentes aspirações e seus desejos políticos é, segundo Zancarini, a invenção de uma língua política que busca dar nome aos seus (da cidade, dos sujeitos) “diversos humores”, na manifestação desta semântica das relações cotidianas com a linguagem.
Em As palavras próprias e naturais e os termos de Estado: léxico da ação e sintaxe da convicção na obra O Príncipe, Jean-Claude Zancarini e Jean-Louis Fournel fazem emergir questões importantes para a tradução técnica. Os autores questionam um pressuposto aceito – ou reivindicado – pelos tradutores de Maquiavel, opondo-se a que a tradução – neste caso, de O Príncipe – traga a cada momento diferentes nomes para uma mesma palavra do texto original, de modo a fechar-lhe os sentidos.
O argumento dos autores para que se opte por um mesmo nome é que este mantenha, como no original, sua polissemia, tomando esta como constitutiva da escrita do autor. A falta de univocidade das palavras próprias e naturais que compõem o texto maquiaveliano constituem sua língua política. A tradução de Maquiavel deve, portanto, permitir o contato com a materialidade enunciativa de sua obra, pois o que se desenha nessa tensão entre sentido técnico-político e polissemia é precisamente o próprio objeto do questionamento de Maquiavel sobre as “coisas novas”, sobre os “objetos novos” do agir e do pensamento políticos (p.104).
Eles ilustram o método maquiaveliano de construção de uma língua política: 1. pela análise de três palavras em O Príncipe: spegnere, ruinare, ordini; 2. pela análise dos elementos ilocutórios presentes na sintagmatização do texto, mostrando uma coerência que contradiz as críticas habituais à sintaxe da obra; 3. pela análise das palavras tratado, discurso e os verbos que lhes correspondem, da presença dos diálogos no texto, e das comparações tecidas por Maquiavel entre o autor e o arqueiro e entre o autor e o pintor, por meio da qual se opõem a uma posição corrente que toma O Príncipe como um tratado, em oposição aos Discursos.
A propósito da Razão e Desrazão do Estado, de Jean Claude Zancarini e Le Cose di Stato: Semântica do Estado e Relações Internacionais em Maquiavel, deRomain Descendre, são dois capítulos que, embora se alternem na divisão estrutural do livro (são o oitavo e o décimo, respectivamente), tratam ambos de fórmulas e expressões relativas ao Estado, que são de grande importância para quem trabalha com a história dos conceitos políticos. De um lado, trata-se refletir sobre os usos da expressão ragione e uso degli stati, formulada, conforme Zancarini, por Guicciardini e, de outro, de se evidenciar a acepção específica que tem o termo stato nos textos diplomáticos de Maquiavel.
Por meio de uma escansão temporal que revisa os estudos e contribuições acerca da idéia de razão do Estado, Zancarini traça um percurso da compreensão e do funcionamento desta expressão no pensamento político florentino do início do século XVI. O autor mostra que stato está, ao mesmo tempo, no vocabulário de Guicciardini, mas também no de Maquiavel. Mais efetivamente, em um dos textos de Guicciardini (Dialogo del reggimento di Firenze), há um ineditismo no modo de analisar o Estado e o poder, pois ele efetua uma clara separação metodológica entre a esfera do agir político e a da moral religiosa (p.137), o que indica de maneira precisa como deve ser tratado o ragionamento do Estado.
Já em Maquiavel, e agora retomamos o capítulo produzido por Romain Descendre, o termo stato demanda algumas especificidades; a ponto de haver, como está proposto pelo autor, “uma semântica de stato em Maquiavel” (p. 170). Outro elemento importante destacado é o quanto foram significativos para a elaboração dos conceitos da língua política de Maquiavel os anos em que ele desenvolveu sua atividade de administração do domínio florentino, principalmente durante as suas missões diplomáticas. Essa experiência resultou no acréscimo de um sentido territorial a stato,o que determina para ele uma natureza geopolítica. No momento em que este termo ainda não existia no pensamento de Maquiavel, assiste-se a uma tomada de consciência da importância do Estado territorial.
Em O agrimensor e o pintor: metáfora, geografia e invenção em Maquiavel, Romain Descendre examina metáforas de ordem espacial ou geográfica em O Príncipe e nos Discursos de Maquiavel. Segundo o autor, algumas dessas metáforas contribuem para explicitar o alcance e os limites da ação do homem (político) no curso da história (p.144). Mas grande parte delas

têm uma dimensão mais propriamente cognitiva ou epistemológica, na medida em que a apreensão visual do mundo serve para pensar a natureza mesma de uma “ciência” política (o geômetra, “aquele que desenha o país”, os decobridores “de mares e de terras desconhecidas”, os “prudentes arqueiros”) (idem).  

Pelo exame dos textos de Maquiavel e das suas relações com os de homens políticos e cientistas contemporâneos, Descendre mostra como as metáforas de espaço têm relação com a conjuntura da virada do século XVI, quando, através da cartografia ou da pintura (realidades novas e contemporâneas), os homens tomam consciência de que eles podem representar a terra, o espaço, o mundo, como jamais antes, e esta consciência lhes dá uma confiança sem dúvida inédita em seus poderes cognitivos (p.167).
Em Giovanni Botero e a língua maquiaveliana da política e da guerra, a análise obra Della ragion di Stato de Giovanni Botero permite a Romain Descendre questionar a interpretação corrente do pensamento político do fim do século XVI, realizada através do filtro da oposição entre maquiavelismo e anti-maquiavelismo. O anti-maquiavelismo presente nos textos da época é, segundo ele, “antes de tudo o instrumento comum às batalhas ideológicas da época, e não seu verdadeiro objeto” (p.185).
A análise, ao contemplar não apenas as questões de conteúdo e as disputas ideológicas, mas as formas do discurso político, mostra que o recurso à língua florentina maquiaveliana e guicciardiniana tem uma função estratégica precisa: a elaboração de um novo pensamento político alternativo à tradicional re-elaboração por Tomás de Aquino da linguagem aristotélica, que já não dá conta do quadro de fratura religiosa, guerras civis e competição dos Estados territoriais.
Pelo exame da nova língua política de Botero, Descendre contesta a interpretação de que o florentino encobriria, sob um anti-maquiavelismo intencional e declarado, um “maquiavelismo envergonhado”. O autor mostra que, ao recorrer a Maquiavel, Botero evitava uma oposição frontal com o francês Jean Bodin e o pensamento de Estado francês e anti-papista que ele representa.

***

Os três autores deste livro, com quem tivemos o prazer de estar em contato em estágios pós-doutorais realizados no Laboratório Triangle, desenham o percurso do pensamento dos homens políticos que fazem e escrevem a história de Florença na época das guerras da Itália com a delicadeza e o rigor de quem se volta para o estudo da história das palavras e das idéias sem a preocupação de categorizá-las em padrões homogeneizantes e/ou pré-concebidos, mas sim com o intuito de mostrar os seus contornos nas redes de sentido que as compõem.
Eles levam a sério a expressão freqüente em Maquiavel: la qualità de’ tempi e a inscrevem no seu método de trabalho. Tomar em conta a qualidade dos tempos implica, para esses autores, na análise dos objetivos dos atores, das relações de força nas quais eles são tomados, e das manobras das ações de que participam, o que só pode ser feito pelo mergulho no tempo das suas palavras e ações. Por meio deste mergulho, eles nos guiam de maneira encantadora pela “história ainda ardente” dos homens políticos florentinos.    

 

Sheila Elias de Oliveira
 Mariângela Pecciolli Galli Joanilho

 

>> Volta