PALAVRAS PRÓPRIAS E ALHEIAS

Eduardo Guimarães
Unicamp

RESUMO: Este artigo traz uma análise da palavra enquanto elemento organizador da Gramática da Linguagem Portuguesa, de Fernão de Oliveira. Dando visibilidade aos domínios semânticos de determinação de “palavra”, Eduardo Guimarães desautomatiza algumas interpretações correntes da primeira gramática do português, como, por exemplo, a de que o tratamento dado à língua é sincrônico.

ABSTRACT: This article brings an analysis of the word as the organizing element of the Gramática da Linguagem Portuguesa (Grammar of Portuguese Language) by Fernão de Oliveira. Through the presentation of the semantic domains of determination of “word”, Eduardo Guimarães goes against some current interpretations of the first Portuguese grammar, as, for instance, the one which says that its approach is synchronic.

Como parte de um esforço para apresentar uma compreensão mais específica sobre o lugar da Gramática de Fernão de Oliveira na História dos estudos da linguagem, vou tomar a atitude de proceder a uma análise conceitual restringindo-me, praticamente, a uma análise interna do próprio texto do Gramático. Com isto quero dizer que não vou me dedicar a apresentar semelhanças e diferenças de seu pensamento no conjunto da história da gramática. Espero assim que esta análise possa auxiliar às reflexões sobre a consideração dos conceitos na sua história, a partir de uma análise de detalhe em um texto.
Embora isto não se diga em geral, pode-se afirmar, do meu ponto de vista, que A Gramática da Linguagem Portuguesa de Fernão de Oliveira se organiza em torno do estudo da palavra: sua constituição “sonora-escrita” (do capítulo VI ao capítulo XXIX); enquanto unidade de significação (do capítulo XXX ao capítulo XLII); sua morfologia e classificação, partes do discurso (do capítulo XLIII ao capítulo XLVIII). Além disso o autor dedica os capítulos iniciais a uma teoria geral da gramática e a uma história da língua; o capítulo XLIX à sintaxe (ou “construição”), algo em torno de uma página, e o capítulo L a uma, por assim dizer, conclusão. Vou me dedicar a um dos aspectos da palavra enquanto unidade de significação. Mais especificamente à distinção palavras próprias a uma língua e palavras alheias
Na Gramática da Linguagem Portuguesa a palavra é também chamada de dição e vocábulo. O seu estudo enquanto unidade que significa considera:

  1. a procedência: palavras nossas, alheias e comuns;
  2. estrutura: apartadas, juntas
  3. permanência: velhas, novas e usadas
  4. modo de significação: palavras próprias e mudadas
  5. formação: primeiras ou tiradas.

A observação destes cinco aspectos indica que o estudo do léxico, na gramática objeto de nossa reflexão, não trata do sentido das palavras, mesmo que a tome como unidade de sentido, como veremos. Quanto à questão do sentido podemos dizer que Fernão de Oliveira reconhece um modo de significação: palavras próprias ou mudadas. Ou seja, palavras cujo sentido é o próprio delas e palavras cujo sentido é mudado (metafórico).
Dos cinco aspectos acima, vamos nos ocupar da procedência das palavras. Tal como posto em 1., as palavras são vistas, quanto à procedência, como palavras nossas, alheias e comuns. O que me interessa realçar é a diferença entre palavras nossas, que no título deste trabalho aparece como palavras próprias da língua, e palavras alheias. O uso, na minha terminologia, de próprias em oposição a alheias, me permite desde o começo trazer uma especificidade, como procurarei mostrar a seguir.
Fernão de Oliveira, ao tratar da procedência das palavras, diz textualmente o que segue:

O que primeiro nestas (dições) havemos d’olhar e o seu fundamento é donde vieram, a que os gregos chamam, como dissemos, etimologia. E esta dividimos em nossa, alhea e comum, porque as dições cuja etimologia buscamos, ou são nossas próprias...; ou alheas...; ou comuns... (p. 118 [39] ).

Por outro lado, logo que Oliveira nos apresenta esta distinção sobre de onde vêm as palavras ele acresce:

E cada hua destas ou são apartadas, como fazer, ou juntas como contrafazer; ou velhas, como ruão, compengar, cicais, ou novas, como peita e arcabuz, ou usadas, como renda, sisa, casa, corda. Ou também são próprias, como livro, porque lemos, ou mudadas, como livro, estromento de musica; ou são premeiras, como livro, ou tiradas, como livreiro e livraria. (p. 119 [40] )

Neste modo de apresentação vou tomar de saída dois aspectos:
1) a indicação de procedência através de palavras como nossas ou nossas próprias; neste modo de apresentar tem especial interesse a presença da forma possessiva nossas (que aqui estou interpretando como palavras próprias);
2) o fato de o autor reescrever os três tipos de palavras quanto a procedência por estas (e cada hua destas...) e depois classificar estas (ou seja palavras nossas, alheias ou comuns) como apartadas ou juntas; velhas, novas ou usadas; próprias ou mudadas; primeiras ou tiradas.

1 O Nosso e o Alheio

Ao reescrever a primeira das categorias por estas e depois apresentar uma nova categorização para este conjunto de aspectos, o texto de Fernão de Oliveira nos apresenta a primeira destas classificações do léxico como a fundamental em relação às demais. Esta primeira categorização coloca a questão da procedência das palavras de uma língua. Segundo tal classificação, as categorias de palavras (de dições) quanto à procedência são três: as palavras que são da própria língua, as que vêm de outra língua, e as que são comuns a várias línguas.
Tomando a própria formulação de Fernão de Oliveira, vemos que ele nos diz que a etimologia (procedência) de uma palavra pode ser: “nossa, alhea, comum”. Ou seja, “nossa, alhea, comum” reescrevem “etimologia” por enumeração. Segundo o que venho fazendo, pela utilização da noção de Domínio Semântico de Determinação (Guimarães, 2004a, 2007a, 2007b), podemos dizer que temos as seguintes relações de determinação:

               Alheias ├ etimologia ┤nossas
                                       ┴
                                  comuns

Ou seja, o sentido de nossa, alhea e comum é determinado pelo sentido de etimologia, e ao mesmo tempo preenche o sentido de etimologia.
A interpretação que fiz, através do título deste trabalho, inclusive, da distinção das palavras quanto à procedência (próprias, alheias e comuns) é marcada pelo gesto anacrônico da interpretação histórica (anacronismo que é preciso compreender para não cair numa armadilha). Por esta interpretação podemos afirmar que Oliveira distingue numa língua: palavras próprias, empréstimos e palavras comuns a várias línguas. Esta divisão tripartida, em virtude de seu terceiro termo, produz um paradoxo: as palavras têm uma procedência ou as palavras não têm uma procedência. Dizer que a procedência é comum é quase o mesmo que dizer que não há procedência. Se deixamos o paradoxo de lado, e ele se resolve, como veremos, podemos dizer que Fernão de Oliveira, no estudo do Português, é o primeiro a reconhecer a diferença entre palavras da língua e empréstimo, seguindo nisso autores como Quintiliano, no livro primeiro capítulo V da Institutio Oratoria, por exemplo. No entanto, perdemos com essa interpretação, que usa palavras de hoje em lugar de palavras do século XVI, algumas especificidades.
Para dar conta destas, façamos atenção às palavras que estão no texto do gramático e que nos ajudarão, também, a ver como se resolve o paradoxo acima. Como vimos, quanto à etimologia, “donde vieram”, as palavras podem ser: “nossa, alhea e comum”.
Cada um desses modos de referir à procedência das palavras é reescrito depois numa abordagem por definição. E esta definição, no caso de nossa, articula uma disjunção:

As nossas dições são aquelas que naceram antre nós ou são já tão antigas que não sabemos se vieram de fora. (p. 119 [40] )

Duas coisas a observar. A primeira delas é que, tal como ao classificar a procedência pelo nossa, aqui também o palavras nossas é definido através de uma formulação em nós (uma primeira pessoa do plural) inclusiva, que inclui o locutor da formulação. Isto significa que esta formulação não distingue o lugar do gramático dos falantes da língua. O Gramático se apresenta como falante, como todos. E esta indistinção não está só significada, mas acaba por dizer outra coisa, a língua é reportada a um nós, a um coletivo específico, os portugueses1.
E nessa conjuntura, o tratamento desta relação entre palavras próprias e empréstimos (palavras nossas e alheias) é formulada de tal modo que significa que a língua é configurada na relação com um coletivo que a fala, um povo (e no caso deste texto, no início do século XVI, os portugueses, o povo português).
Deste modo, a procedência das palavras não é caracterizada por uma relação palavra-língua, mas por um sentimento, num certo presente do gramático, dos falantes em relação à língua e às suas palavras. As palavras são “nossas” e são, neste presente específico, sentidas como “nossas”. E é nesta medida que palavras comuns são definidas como:

Dições comuns chamamos aquellas que em muitas línguas servem igualmente; e o tempo em que se mudaram d’hua língua para outra fica tão longe de nós, que não podemos facilmente saber de qual para qual língua se mudaram... (p. 123 [44] )

 Desfaz-se assim o paradoxo criado pelo terceiro termo, pois as palavras comuns são as que são sentidas como sendo de várias línguas, ou melhor como de nenhuma em particular. Por outro lado, a língua é tomada na sua relação permanente com um povo.
Coseriu (2007) chega a dizer que se trata de uma abordagem sincrônica da questão. Prefiro ressaltar que se trata de uma relação dos falantes com a língua num presente permanente que inclui o texto do gramático. Tomar como tratamento sincrônico o procedimento de Fernão de Oliveira não desfaria o paradoxo introduzido pelo terceiro termo (palavras comuns). Considerar que a posição de Fernão de Oliveira é um tratamento sincrônico da língua obriga a explicitar que conceito de língua se formula como uma concepção sincrônica. E ao mesmo tempo nos obriga a observar se o conceito de língua  praticada pelo Gramático se articula bem com o conceito de sincronia. Se pensamos que língua, para Saussure, já que a menção ao sincrônico o coloca em cena, “é um sistema que conhece somente sua ordem própria” (Saussure, 1916, p. 31), temos que levar em conta que esta concepção de língua vai considerar que do ponto de vista que toma a língua como um sistema de valores, a própria noção de empréstimo sequer tem lugar. Como disse o próprio Saussure, numa passagem um pouco antes da passagem logo acima citada:

Cumpre sobretudo notar que o termo emprestado não é considerado mais como tal desde que seja estudado no seio do sistema; ele existe somente por sua relação e oposição com as palavras que lhe estão associadas, da mesma forma que qualquer outro signo autóctone. Em geral, não é nunca indispensável conhecer as circunstâncias em meio às quais se desenvolveu uma língua. (Saussure, 1916, p. 31)

Ou seja, se há em Oliveira alguma noção de sincronia, ela envolve um outro conceito de língua. E por outro lado, é outro o sentido de língua para o Gramático, já que para ele se coloca de modo fundamental a questão da  procedência das palavras. Uma língua é vista na relação com outras línguas, e está sempre relacionada com um povo que a fala. E aí talvez se pudesse pensar, já que Coseriu caracterizou seu procedimento como sincrônico, que o sentido de língua de Oliveira se aproxime do sentido que Coseriu dá ao termo norma. Segundo este, a norma contém

só o que do falar concreto é repetição de modelos anteriores. (...) São os aspectos comuns que se comprovam nos atos lingüísticos considerados e em seus modelos. (Coseriu, 1969, p. 95-96)

Mas também neste sentido não parece adequado pensar que este poderia ser o conceito de língua de Oliveira, tal como o podemos entender pelo seu modo de considerar a procedência das palavras, pois o que está em questão é o “sentimento” dos falantes da língua. É bem verdade que se trata de uma categoria “falantes” coletiva, que podemos caracterizar como um povo. É por isso que consideramos que não se trata de um conceito de sincronia, mas da consideração da língua no presente do tempo da enunciação do gramático, o que não se confunde, veja-se, com um presente cronológico.

2 A Dição é Voz

Tal como anunciamos no início, palavra é unidade de significação para Fernão de Oliveira. Ao definir o que são as dições (palavras)ele diz:

palavra é voz que significa cousa ou auto ou modo... (p. 118 [39] )

Aqui a definição nos traz um novo termo, voz. E o que é voz? Esta é uma palavra que se repete insistentemente no decorrer da obra. Há, de modo particular, uma passagem em que voz aparece como o nome de uma das partes da gramática:

A primeira partição que fazemos em qualquer língua e sua gramatica seja esta em estas três partes: letras, sillabas e vozes, que também na nossa de Portugal com suas considerações conforme à própria melodia. (p. 89 [10] )

Ou seja, uma gramática estuda as letras, as sílabas e as vozes. E as palavras são vozes que significam algo. As palavras (as dições) são vozes que significam. Dadas estas relações de reescrituação e articulação (voz reescreve dição por totalização e significa predica voz), voz e significação determinam dição (palavra). Tem-se, então, o seguinte DSD:


          voz ┤ dição ├ significação

3 A Unidade da Língua

Por outro lado, as palavras (dições), como já dissemos, podem ser consideradas sob cinco aspectos, que aparecem como caracterizações (neste segundo caso, não se trata de enumeração) das palavras. Deste modo, a etimologia (que chamei procedência), assim como estrutura, permanência, modo de significação e formação determinam palavra (dição), tal como abaixo (incluo a especificação, apresentada anteriormente, das determinações que caracterizam a relação entre etimologia e nossa, alhea e comum).

               Nossas         estrutura   formação
                   ┬                  ┴             ┴                            
Alheias ├ etimologia  ┤      PALAVRA     ├ modo de significação
                   ┴                         ┬
               Comuns           permanência

O DSD acima nos coloca dois aspectos, de uma lado ele explica um efeito de hiperonímia de etimologia para nossas, alheias e comuns, e ao mesmo tempo explica um efeito matricial entre etimologia, estrutura, permanência, modo de significação e formação. Exemplifiquemos este último aspecto observando a relação entre etimologia e estrutura, onde a, b, c, at, cy, wz são palavras:

estrutura

 

etimologia

 

 

Nossas

alheias

comuns

apartadas

A

b

c

juntas

At

cy

wz

Tal como já dissemos, a questão da relação entre línguas aparece como o aspecto mais geral e fundamental da natureza do léxico de uma língua. E os outros aspectos categorizam cada palavra inicialmente tomada em sua etimologia (procedência). E isto torna mais relevante a consideração do conceito de língua que se pode tirar do modo de configurar a questão da procedência das palavras, considerada mais acima.
Ligando o DSD de palavra anteriormente estabelecido com o DSD específico de etimologia, temos:

nossas
┬  
alheias ├   etimologia ┤ Comuns
┴  
voz ┤PALAVRA ├ significação    

                  
Tomando assim Fernão de Oliveira como um acontecimento na história dos estudos de língua, podemos considerar que ele tem, como um seu passado, Quintiliano, entre outros, e se articula com um futuro como a posição saussureana e outras que daí se desdobram. Não há como dar sentido a um acontecimento do saber, senão interpretando, e aí estamos tomados pelo futuro que se desdobrou depois daquilo que é para nós um passado.                                                                  
E como vimos que a procedência, a etimologia é a categoria fundamental, entre as cinco que tratam das dições, não há palavra que não seja considerada sem sua procedência. Esta é a determinação principal que incide no DSD sobre palavra, já considerada como determinada como voz e significação. Assim todos os outros aspectos têm a ver com a procedência, sob o efeito matricial acima colocado. Todos os aspectos relativos à palavra, às dições, são necessariamente significados afetados pela procedência. E isto tem a ver diretamente com o sentido que língua tem na obra de Fernão de Oliveira.
A etimologia, como vimos, deixa de ser considerada como uma relação forma-sentido para ser uma relação falante-forma-sentido, não levando em conta o percurso temporal das formas e dos sentidos. Ao lado disso, a categoria comuns considera que as línguas estão em relação, ao contrário, por exemplo, da posição saussureana que pensa que cada língua é uma língua. E a “contemporaneidade” da abordagem de Oliveira não se configura como uma sincronia avant la lettre, mas como a tomada de posição do gramático que toma a língua numa relação com o presente de sua enunciação.
Dada a análise feita acima que nos levou a dizer que

          voz ┤ dição ├ significação

podemos dizer que:

Significação   |
                     |
        ┴           |   ▬     dição (palavra)
                     |
       voz         |

Ou seja, podemos dizer que, na medida em que voz é determinado por significação, torna-se sinônimo de palavra.
Por outro lado, já vimos como etimologiapalavra. Assim, palavra é voz que significa e é de uma língua, ou a nossa ou uma alheia. Em outros termos, palavra é palavra de uma língua. O que significa dizer que línguapalavra, o que nos dá:

Significação  |         etimologia
                    |              ┴
       ┴           |   ▬     dição (palavra) ┤ língua
                    |
      voz         |

E nesta medida é que podemos dizer que a sintaxe é sintaxe de palavra, de voz que significa em alguma língua. Deste modo, para ele, a sintaxe tem a ver com a significação. Não há sintaxe da voz, mas da palavra.
Dito isto, não podemos deixar de considerar que o desenvolvimento de uma sintaxe na sua gramática poderia acabar por deslocar a centralidade da etimologia na sua construção.

Notas

1 Este tipo de sobreposição é muito comum nas gramáticas. Na história da gramática brasileira, pude notar isso ainda no decorrer do século XX (ver, por exemplo, Guimarães, 2004b).

Referências Bibliográficas

Coseriu, E. (2007) “Apreciação Global”. In. Oliveira, Fernão de Gramática da Linguagem Portuguesa (1536). Edição Crítica, semidiplomática e anastática por A. Torres, e C. Assunção. Vila Real: Centro de Estudos em Letras da Universidade de Trás-os-Montes e alto Douro.
Coseriu, E. (1969) “Sistema, Normal y Habla”. Teoria del Lenguaje y Lingüística General. Madrid: Gredos,  p. 95-96.
Guimarães, E. (2004a) “Civilização na lingüística brasileira no século XX”. In Matraga, Rio de Janeiro, 16, p. 89-104.
-----------. (2004b) História da Semântica. Sujeito, Sentido e Gramática no Brasil. Campinas: Pontes.
-----------. (2007a) “Política de Línguas na Lingüística Brasileira”. In Orlandi, E. Política Lingüística no Brasil. Campinas: Pontes. Guimarães, E. (2007b) “Domínio Semântico de Determinação”. A Palavra: Forma e Sentido. Campinas: Pontes.
Saussure, F. de (1916) Curso de Ligüística Geral. São Paulo: Cultrix, 1970, p. 31.

Palavras-chave: domínio semântico de determinação, palavra, gramática
Key-words: semantic domain of determination, word, grammar

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